Funcionários de autarquias de saúde ouvidos pelo GGN narram precarização que vem se arrastando há 7 anos, desde o governo de Geraldo Alckmin, segundo eles, acentuada na atual gestão de João Doria
Jornal GGN – A Fundação Pró-Sangue, que é o banco de sangue do estado de São Paulo, um dos maiores hemocentros da América Latina e referência da OMS (Organização Mundial da Saúde), vem enfrentando o desmonte de suas estruturas. Com os funcionários deixados para o final da fila da vacinação de Covid-19, uma sequência de defasagens veio à luz, escancarando um buraco maior que a saúde pública do estado vem enfrentando.
Nas últimas semanas, trabalhadores da Pró-Sangue usaram as redes sociais e publicaram textos, de forma anônima, relatando indignação por terem sido deixados de lado na lista da linha de frente da saúde que recebeu as primeiras doses da vacina contra a Covid-19. A falta de estoques nessa primeira distribuição não era o problema anunciado, mas de membros do setor administrativo, acadêmico e outros funcionários que não tinham contato com pacientes terem sido priorizados.
Na última sexta (22), o Ministério Público do estado (MP-SP) questionou a Secretaria de Saúde por não estar obedecendo os critérios de prioridade para a imunização, citando como exemplo o Hospital das Clínicas (HC) da USP, do qual a Fundação integra. Como resposta, o secretário municipal da Saúde, Edson Aparecido, pressionou o HC, que decidiu devolver 4,6 mil doses da Coronavac, sem contemplar os funcionários dessas autarquias, como a Pró-Sangue, que tem contato direto com pacientes.
Mas a indignação sobre furar a “fila da vacina” foi somente o estopim para denúncias mais graves que os trabalhadores vêm arrastando há 7 anos, desde o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) e que, segundo os relatos, foram mantidos e acentuados na atual gestão de João Doria (PSDB).
Em todas as denúncias da Fundação Pró-Sangue recebidas pelo GGN, são mencionados a falta do reajuste salarial, condições de infraestrutura precárias que geram lesões por esforço repetitivo (LERs), sobrecarga de trabalho, paralisação dos concursos públicos e de contratações do governo estadual e, mais recentemente, o corte do atual plano de saúde.
A falta de reposição salarial começou há aproximadamente sete anos, relatam os funcionários. Durante cinco anos, o reajuste foi suspenso e, posteriormente, criado um plano de cargos e salários, com a suposta promessa de repor as remunerações. Entretanto, os dissídios foram novamente paralisados.
Somam-se ao congelamento dos salários, a falta de pessoal e a suspensão dos concursos públicos para novas contratações pelo governo de São Paulo, situação que é relatada há cerca de também cinco anos.
“A queda da Fundação já vem vindo faz tempo. O buraco está em todo nosso sistema”, relatou um funcionário ao GGN.
E a perspectiva não é menos pessimista. Ao contrário, um decreto publicado pelo governador João Doria, em 12 de janeiro (Decreto 65.463/21), suspende até o último dia deste ano a realização de concursos públicos, incluindo os que estão em andamento, seja na administração direta do governo, como também nas autarquias, como é o caso da rede hospitalar HC do estado.
Por fim, em outubro de 2020, em plena pandemia, uma disposição da Secretaria de Saúde do governo de São Paulo determinou que os profissionais da Fundação Pró-Sangue perderiam o plano de saúde com a empresa Notre Dame Intermédica, sendo obrigados a aderir ao IAMPSE (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual), sistema que alegam ter menor cobertura e que desconta um percentual dos salários dos servidores para a adesão.
“Já tentaram tirar o nosso convênio [de saúde] há uns dois anos, ativamos o SindSaúde e conseguimos segurar o plano. Na época, eles já alegavam que não tinham dinheiro e provamos, junto ao DIEESE [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], que eles detinham essa verba e recuaram. Agora, aproveitaram uma brecha na lei que afirma que se pode transferir qualquer funcionário de autarquia para o IAMSPE, descontando um fator do salário de acordo com a faixa etária, o que não é feito hoje, para poder pagar esse convênio”, narrou o funcionário.
“Nós estamos aí há vários anos sem dissídio salarial, agora eles vão precarizar o nosso convênio médico jogando a gente para o IAMSPE, excluindo várias pessoas que têm tratamentos sérios”, divulgou outro trabalhador.
“Na pandemia está sendo retirado nosso convênio, precarizando a assistência à saúde dos funcionários que fazem tratamento médico com patologias como câncer e doença autoimune, entre outras”, diz outro relato.
As denúncias, todas na mesma linha, descrevem a precarização dentro da Fundação Pró-Sangue: “Existe ainda um número baixo de funcionários, estagiários que trabalham esgotadamente e que ganham pouco, não estão fazendo concurso público, não temos nenhuma sala decente… Sem falar nas bancadas horrorosas em que a gente trabalha, problema que nos faz desenvolver lesões.”
“Trabalhamos feitos burros de carga, sem dissídios salariais e sem aumento há mais de 7 anos, poucos funcionários, sem concurso para mais, tem estagiários contratados que cumprem uma escala como se fossem funcionários, mas ganham um valor absurdamente menor”, diz outro.
Segundo o funcionário ouvido pelo GGN, o cenário dentro da Pró-Sangue é somente um dos casos que enfrenta atualmente toda a rede de autarquias da saúde da Secretaria de São Paulo, como o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, segundo ele, com derrocadas em suas estruturas, salários e falta de concursos, sendo levados a terceirizações.
“Está começando a terceirização de funcionários e proibição de concursos públicos. Agora, em dezembro, teve um processo para contratar uma empresa para fornecer técnicos em hemoterapia. Na fundação [Pró-Sangue] está começando a terceirizar. Mas no Hospital das Clínicas, tem a Faculdade de Medicina [FFM] e Fundação Zerbine que fornecem funcionários. O estado está cortando verba faz tempo, mas cada vez mais”, relatou.
Á reportagem, o Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúde-SP) confirmou as denúncias e afirmou que a precarização do trabalho está generalizada por toda a rede de saúde do estado.
“Já faz um tempo que tentamos negociar com o governo [a situação com a Fundação Pró-Saúde], mas sem nenhuma solução efetiva. Estamos vivendo um caos na saúde do governo, não contratam por concurso público há muito tempo e a sobrecarga de trabalho é constante”, afirmou a presidente do SindSaúde-SP, Cleonice Ferreira Ribeiro, ao GGN.
“Basta ver a situação do hospital Heliópolis, total abandono e péssimas condições de trabalho. Esse é o cuidado que João Dória tem com a população e os trabalhadores da saúde no estado de São Paulo. Mantém os hospitais neste estado [precário] e depois entrega para [o cuidado das] Organizações Sociais”, acrescentou.
A reportagem contatou a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, mas até o fechamento desta reportagem não obteve o retorno.
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