A jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que há todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático
Uma indígena yanomami com uma máscara em 30 de junho em Alto Alegre. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, há mais de 17.000 indígenas contaminados por covid-19, 547 mortos e 143 povos atingidos.
Desde que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionou a palavra “genocídio” à atuação do Governo de Jair Bolsonaro diante da covid-19, o debate entrou na pauta pelo andar de cima. Não só no Brasil, mas no mundo. As denúncias de genocídio, tanto dos povos indígenas quanto da população negra, pelo atual Governo, não são novas. Em geral, são tratadas como evocações subalternas, da mesma forma subalterna que essas populações são tratadas historicamente pelas elites brasileiras. Ao desembarcar da boca togada de um ministro do STF, a palavra ganhou outra densidade. E, principalmente, se instalou. Já não é mais uma palavra fantasma, que ao ser dita nada move. Genocídio, pela boca de Gilmar Mendes, deixou de ser uma carta deliberadamente extraviada e chegou ao seu destino.
Em 11 de julho, o ministro afirmou em um debate online: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, é atribuir a responsabilidade a Estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.
Generais como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que não só pertencem e representam o Governo Bolsonaro, mas também o sustentam e o legitimam, se alvoroçaram porque sentiram o risco real de, em algum momento do futuro próximo, responderem por crimes contra a humanidade. Mesmo entre os que não apoiam Bolsonaro, termos como “hipérbole”, “exagero” e “banalização” foram usados para reduzir a potência da declaração do ministro. A palavra, porém, finalmente encarnada, permanece ativa.
Exatamente porque o genocídio, assim como os demais crimes contra a humanidade, são da maior gravidade é que se torna preciso debater o tema com a máxima seriedade, impedindo que ele seja capturado pela polarização ou pelas conveniências políticas de ocasião. Exatamente porque se trata da morte de pessoas que, num país que já ultrapassa as 80.000 vítimas por covid-19, mesmo com a reconhecida subnotificação, é urgente debater com responsabilidade: há ou não evidências de que o presidente da República e outras autoridades brasileiras possam ter cometido genocídio na resposta à covid-19?
Para responder a essa pergunta crucial, entrevistei a jurista Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Direito e saúde global – o caso da pandemia de gripe A - H1N1 (Editora Outras Expressões), Ventura é uma das mais respeitadas autoridades no estudo da relação entre pandemias e direito internacional. É também mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade Paris 1 e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o prestigiado Sciences-Po.
Desde que iniciou a pandemia, é uma das articuladores do Projeto Direitos na Pandemia, realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direitos Sanitários da USP e a organização Conectas Direitos Humanos. Todos os atos e a legislação brasileiras sobre a covid-19 são coletados e classificados em seu impacto sobre os direitos humanos. Isso impõe à jurista um acompanhamento cotidiano e permanente do Diário Oficial da União, onde muito se passa sem que a maioria dos brasileiros perceba.
Já não estamos no século 20, quando o conceito de genocídio foi criado a partir da necessidade de nomear o crime perpetrado pelo nazismo contra os judeus. O século 21 não é apenas uma convenção temporal, ele trouxe desafios novos, como o enfrentamento das pandemias e da emergência climática. Apenas há alguns anos, Ventura, então professora de direito internacional no Instituto de Relações Internacionais da USP, precisava constantemente explicar por que havia escolhido estudar uma pandemia no contexto do direito internacional. Hoje, já não é mais preciso explicar. O entendimento é imediato.
Nesta entrevista, feita por telefone ao longo de duas horas na última segunda-feira (20/7), Deisy Ventura explica por que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro, assim como outras autoridades do Governo, por crimes contra a humanidade, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira. Ela explica também por que é essencial para o futuro do Brasil que esse debate aconteça.
Pergunta. A declaração do ministro do STF Gilmar Mendes, alertando que os militares poderiam estar se associando a um genocídio, referindo-se à forma como a pandemia de covid-19 estava sendo tratada pelo Governo brasileiro, produziu várias reações. Alguns juristas e intelectuais foram rápidos em classificar a declaração como uma “banalização” do conceito de genocídio. Houve banalização?
Resposta. Existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70.000 pessoas. É muito importante que um membro do Supremo Tribunal Federal, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala. A diplomacia brasileira teria recebido desde o ano passado uma orientação clara para frear o uso deste termo. Existe um alerta para não deixar que se difunda no Exterior a ideia de que está ocorrendo um genocídio no Brasil. Assim, cada vez que a palavra é pronunciada em relação ao Brasil, a diplomacia reage. Infelizmente, em geral desqualificando quem fez a declaração e caracterizando-a como banalização. Até então o genocídio era associado à população indígena e não relacionado à pandemia. Agora, com a fala do ministro, chegamos a outro patamar e precisamos discutir com muita serenidade essa questão. Não podemos falar sobre genocídio de uma forma polarizada e vulgar. É chegado o momento de falar do genocídio fora da clivagem da banalização. Não é apenas um grito dos mais fracos para chamar a atenção. Estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil.
P. E quais são esses indícios?
R. Primeiro, preciso dizer que, no que se refere à população em geral, acredito que há o crime de extermínio, artigo sétimo, letra b, do Estatuto de Roma. É também um crime contra a humanidade. E, no caso específico dos povos indígenas, minha opinião é de que pode ser tipificado como genocídio, o mais grave entre os crimes contra a humanidade. O crime de extermínio é a sujeição intencional a condições de vida que podem causar a destruição de uma parte da população. O que chama a atenção, neste caso, é que o exemplo usado no texto do Estatuto de Roma é justamente o da privação ao acesso a alimentos e ao acesso a medicamentos. Desde o início da pandemia, o Governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam dar uma resposta efetiva à doença, contra aqueles que tentam controlar a propagação e o avanço da covid-19. E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades. E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu. Apesar da subnotificação, que é consensual, já que todos estão de acordo que há mais casos no Brasil do que são reconhecidos, ainda assim há um volume impressionante e existe um perfil claríssimo das pessoas que são mais atingidos pela doença. Tanto no genocídio da população indígena quanto no que, na minha opinião, é uma política de extermínio com relação à resposta geral da pandemia, eu vejo claramente uma intencionalidade.
P. A intencionalidade é fundamental para tipificar a autoria tanto do genocídio quanto do extermínio. Mas há juristas experientes defendendo que seria difícil provar a intencionalidade no caso da resposta do Governo brasileiro à pandemia...
R. Existem pessoas por quem tenho o maior respeito e que conhecem o sistema penal internacional e que pensam que não é o caso de um crime de genocídio ou outro crime contra a humanidade porque se trataria de uma política fracassada do Estado brasileiro. Nesta interpretação, o que estaria acontecendo no Brasil é que o Governo fracassou na resposta à pandemia. Seria apenas uma resposta ineficiente. E os tribunais internacionais não julgam políticas, julgam pessoas que cometem crimes. Assim, só poderíamos reclamar junto ao sistema interamericano de direitos humanos ou outras instâncias de controle do respeito aos tratados de direitos humanos. Eu não penso assim. Vejo uma intenção clara.
P. Como essa intenção se expressa, em sua opinião?
R. Faz parte da definição dos crimes contra a humanidade a existência de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Estes dois elementos são muito importantes. Algumas pessoas dizem também que o Tribunal Penal Internacional seria para conflitos armados. Isso também não é verdade. O estatuto é claríssimo. Não é preciso haver uma guerra ou conflito armado para que se pratique um crime contra a humanidade. E, mais do que isso, até a tentativa de genocídio é punível pelo estatuto. Sequer é necessário que ele tenha sido consumado. Da mesma forma, se pune também a incitação ao genocídio. A incitação é punida, a tentativa é punida. Precisamos analisar com muita serenidade o que tem acontecido no Brasil. Afirmo que nem de longe se trata de uma política fracassada de resposta à covid-19. Nem de longe. O Governo age de uma maneira claríssima em combate à saúde pública. Ele não só dissemina falsas informações sobre a doença e, portanto, age no plano da comunicação para disseminar o negacionismo, como ele também construiu um conjunto de ações, inclusive por via legislativa, para obstaculizar as medidas de combate e prevenção à covid-19 de iniciativa de outros poderes. Vejo aqui todos os elementos configurados: ataques sistemáticos e a intenção de sujeitar uma parte importante da população brasileira a condições de vida que podem implicar a sua destruição.
R. Por que, então, juristas respeitáveis estão sendo, digamos, tão cautelosos?
P. É evidente que o Tribunal Penal Internacional nunca foi confrontado a uma situação como a que estamos vivendo no Brasil. Então é natural que alguns juristas, por maior que seja a sua experiência e o seu valor, digam que nunca cuidaram de uma questão como esta. Nunca vivemos uma pandemia com esse alcance na contemporaneidade, com a existência de um sistema de saúde pública universal, na qual temos os meios para uma resposta eficiente, e o Governo federal optou por não oferecer essa resposta. Muitas pessoas são grandes estudiosas do direito penal internacional, mas talvez não tenham estudado de forma mais detida o que o Governo brasileiro tem feito com relação à covid-19. Uma coisa é acompanhar as falsas polêmicas, e também as verdadeiras, nesta forma de fazer política do Brasil atual, onde o falso se mistura com o verdadeiro. O presidente da República é um agitador de extrema direita e o movimento que o levou ao poder busca de forma ostensiva aparelhar o Estado brasileiro. Órgãos do Estado, como a própria Secretaria de Comunicação, segundo o Poder Judiciário, tentaram veicular campanhas que insuflam a população contra as autoridades. O presidente da República chegou a sugerir a invasão de hospitais para que seus seguidores os fotografassem, para assim “comprovar” a tese complotista de que a covid-19 não seria tão grave nem teria se propagado nessa dimensão. Nós temos configurada aqui muito mais do que uma omissão. Nós temos uma ação intencional clara e também um caráter sistemático. Mas uma coisa é acompanhar as declarações do Governo por lives e pela imprensa, acompanhar essas ofensas, assim como o descaso com a dor das famílias que perderam pessoas queridas por covid-19. Além desse circo de mentiras e distorções, precisamos também ir lá olhar o Diário Oficial, para entender o que acontece atrás da cortina de fumaça. Quando a gente vai lá ver, vai somando evidências claríssimas dessa intencionalidade. Não são apenas as falas do presidente, mas uma sucessão de atos que demonstram uma intenção clara e uma ataque sistemático às tentativas de controle da propagação da doença. Por isso, em minha opinião, existe uma política de extermínio em curso.
P. Para provar que há genocídio e outros crimes contra a humanidade é necessário também mostrar que há um plano. É possível estabelecer a existência de um plano, no caso da resposta do Governo brasileiro à covid-19?
R. Sim. E também o plano é muito claro para quem acompanha e pesquisa diariamente o que está acontecendo com a covid-19. Aquilo que o presidente da República chamou de “guerra” e de “jogar pesado” contra os governadores constitui claramente um plano para obstruir uma resposta eficiente dos Estados à pandemia, com etapas como o pedido a empresários para que deixassem de financiar campanhas eleitorais de governadores não alinhados, ameaças constantes em declarações públicas e incitação à desobediência civil, entre muitas outras medidas legislativas ou administrativas. O presidente chegou a demitir dois ministros da Saúde que não concordavam com seus planos para a pandemia.
P. Qual é a importância de um debate como este, num momento tão grave como o que o Brasil está vivendo?
R. Quando a gente atribui um crime a alguém é preciso uma investigação, é preciso um processo e é preciso um julgamento. Eu vejo todas estas etapas como extremamente importantes para que possamos entender o que acontece no Brasil em um outro patamar. Seria muito ruim se, ao final desse acontecimento terrível, a versão sobre o que aconteceu fosse a de que esse Governo foi simplesmente incompetente. E seria muito ruim porque isso não é verdade. A discussão sobre a tipificação dos crimes contra a humanidade me parece fundamental, mas ela precisa ser feita de uma forma muito tranquila, porque não se trata de agitação, nem se trata de insuflar pessoas. Se trata, sim, de uma tese muito séria, que tem condições de prosperar na esfera internacional. E não só isso. Tem condições de prosperar também na esfera interna, porque genocídio é um crime tipificado na legislação brasileira. Temos toda uma base também no direito brasileiro para discutir se o que está acontecendo aqui é um genocídio ou não ―e também temos a discussão internacional. Nada disso me parece uma questão sobre políticas públicas, mas sim uma questão sobre responsabilização individual. Precisamos responsabilizar criminalmente as pessoas que estão promovendo genocídio ou outros crimes contra a humanidade, como o de extermínio.
P. O que você está dizendo é que, no que se refere à resposta do Governo brasileiro à covid-19, não se trata de incompetência, como alguns querem fazer crer. Você está afirmando que há dolo, há intenção. Além das declarações bem conhecidas do presidente Jair Bolsonaro, quais são os atos, publicados no Diário Oficial, que provam isso?
R. Mesmo naquela famosa declaração de 24 de março, em que o presidente usa a expressão “gripezinha” para se referir à covid-19, há muito mais do ponto de vista jurídico. No mesmo pronunciamento o presidente critica, por exemplo, o fechamento das escolas. Existe o que aparece mais, o mais comentado, mas também existem outros elementos que configuram que não se trata apenas de uma expressão infeliz. Imagine, numa corte internacional, um juiz que se defronta com uma fala de um presidente da República que, em plena pandemia, se pronuncia contra o fechamento das escolas...
P. E quanto aos atos, você poderia citar alguns?
R. Há muitos. Existe um enorme exemplo com relação à população em geral que é a lei 14.019, de 2 de julho, que trata do uso das máscaras. O presidente vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de informar em cartazes a forma correta de usar as máscaras e vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de afixar o número máximo de pessoas que deveriam estar lá dentro. Se construiu uma lei sobre o uso de máscaras para conter o avanço da pandemia, e perceba que esta lei é de 2 de julho, quando já estamos com dezenas de milhares de mortos e com a interiorização da doença. O presidente então veta essas obrigações. Entre outros vetos, veta a obrigação do uso da máscara no sistema carcerário, veta nos estabelecimentos de ensino e veta nos templos. Isso sim é banalização do veto. E são vetos contra a saúde pública. Outro exemplo é o atraso na sanção da norma que liberava recursos financeiros para os Estados. Este é um debate que chega a me causar arrepios. Muitos Estados estavam já sem recursos para comprar insumos, como respiradores e até sedativos. Os Estados então pedem essa ajuda, o Congresso aprova a ajuda e o presidente retarda ao máximo a sanção à lei que provê socorro financeiro aos Estados que estão na linha de frente da resposta. O que é isso senão obstaculizar a contenção da propagação da doença? Outra questão evidente. Quando o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), depois de pedir muitas vezes ajuda ao Governo Federal e de tentar muito conseguir insumos, especialmente respiradores, organiza uma compra, é ameaçado e a Receita Federal declara que haveria processo contra ele e todas as pessoas envolvidas. Mais. As ameaças de operações policiais contra os governadores, na tentativa de caracterizar a resposta à pandemia, a compra de insumos, como corrupção, como se gastos com hospitais de campanha e respiradores fossem necessariamente uma forma de enriquecimento ilícito. Há a substituição de quadros experientes do Ministério da Saúde, com grande conhecimento sobre a resposta a doenças infectocontagiosas, por pessoas sem nenhuma experiência. Segue. A tentativa de manipulação de dados da covid-19... Há ainda o uso de cloroquina, inclusive em comunidades indígenas. No começo a própria Organização Mundial da Saúde estava investigando a eficácia ou não. Mas, hoje, não há a menor dúvida. Além de tudo o que significa o uso da cloroquina, ainda se configura a intenção de iludir as pessoas de que existe uma forma de tratar a doença. Você quer mais exemplos? Posso continuar por algumas horas.
P. Acho que está claro.
R. É necessário entender que existem duas grandes vertentes para dizer da pertinência dos crimes contra a humanidade, inclusive o de genocídio. Uma é a vertente da comunicação e a outra é o ataque contra os Governos dos Estados. A comunicação é absolutamente criminosa, porque incita as pessoas a pensarem que a doença não é tão grave, incita a não se protegerem, e existe a obstrução constante por atos, constrangimentos e ameaças aos Governos locais que conduzem a resposta à pandemia.
P. E quanto aos povos indígenas, especificamente?
R. Com relação aos indígenas, duas questões são especialmente relevantes entre muitas. Sem hesitar, eu daria dois exemplos. O primeiro é o debate sobre o contato com os povos isolados. Uma portaria da Fundação Nacional do Índio, a portaria 419, se apresenta como uma portaria que vai coibir o contato com as comunidades isoladas. Só que, no meio, olhando com lupa, essa portaria abre uma exceção: a de que poderia haver o contato com as populações isoladas com autorização da Funai. O Governo tenta, sempre. A intenção é clara. Há então uma resposta muito forte da sociedade civil. Há uma recomendação do Ministério Público Federal, ainda em março, e então essa portaria é modificada. Mas a tentativa está lá. Em fevereiro deste ano, a Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os povos indígenas, ao saber que um líder evangélico poderia chefiar a coordenação de povos isolados da Funai, já tinha apontado o potencial de produzir um genocídio. O genocídio está muito longe, portanto, da banalização. Estamos falando de uma relatora das Nações Unidas para os direitos dos povos indígenas. O segundo ponto ―e é até difícil falar tranquilamente sobre isso― é a lei do plano emergencial de enfrentamento da covid-19 nos territórios indígenas. Para começar a conversa: o plano emergencial é uma lei de 7 de julho ―7 de julho! Ou seja. Em julho nós vamos aprovar o plano emergencial para enfrentar uma emergência que foi declarada pela Organização Mundial da Saúde em 30 de janeiro e, pelo Brasil, em 3 de fevereiro. Aqui mesmo, no Brasil, já se reconhecia a emergência nacional desde fevereiro! E só em julho vão fazer o plano para combater a pandemia nos territórios indígenas. Bem, neste plano, a União precisa garantir um conjunto de medidas para enfrentar o vírus...
P. E Bolsonaro vetou a garantia de acesso à água potável aos povos indígenas...
R. Muita gente ficou chocada com o fato de o presidente da República vetar a garantia de acesso à água potável. Mas, se nós formos ler o conjunto dos vetos, vamos ver que vai muito além de uma suposta crueldade com relação à água. Foi vetada a obrigação de organizar o atendimento de média e alta complexidade nos centros urbanos, foi vetado o acompanhamento diferenciado dos casos que envolvam os indígenas, inclusive foi vetada a oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI. Foi vetada a obrigação de aquisição ou disponibilização de ventiladores de máquinas de oxigenação sanguínea, foi vetada a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, que inclusive obrigava o SUS a fazer o registro e a notificação da declaração de raça e de cor. Com este veto, se tenta dificultar a identificação dos indígenas atendidos no SUS. Veja como a comunicação é importante... Foi vetada a parte da obrigação de elaboração de materiais informativos sobre os sintomas da covid-19 em formatos diversos e por meios de rádios comunitárias e de redes sociais com tradução e linguagem acessível. Isso foi vetado. Foi vetada a obrigação de explicar para os indígenas a gravidade da doença! Foi vetada a obrigação de oferecer pontos de internet nas aldeia para não ser preciso se deslocar aos centros urbanos. Foi vetada a distribuição de cestas básicas, de sementes e ferramentas agrícolas a famílias indígenas. Por isso, eu afirmo: a questão vai muito além das frases de efeito, vai muito além de tudo aquilo que é promovido pelo Governo Federal para insuflar a sua base de apoio a odiar as instituições, a odiar os partidos de oposição, a odiar a população que é considerada por eles inferior e subalterna, como indígenas e negros, aqueles que atrapalham seus interesses e são considerados por eles um obstáculo do ponto de vista da racionalidade econômica que eles defendem.
P. Que racionalidade econômica é esta?
R. A racionalidade econômica que eles defendem é a do lucro imediato, a dos privilégios para os amigos do rei. E esta é uma racionalidade que sequer é uma preocupação com a economia do país. Não é. É uma preocupação com interesses de determinadas pessoas. A questão econômica é da maior importância na resposta à pandemia. Eu gosto muito do trabalho da (economista) Laura Carvalho, não só pela sua linguagem acessível, mas porque ela diz claramente que o problema da pandemia não são as medidas de contenção, é a pandemia em si. Morrer é muito ruim também para a economia de uma família. Sofrer por uma doença evitável é muito ruim também para a economia. Uma resposta séria para efetivamente conter a propagação da doença seria mais efetiva para a economia do que o negacionismo. O prefeito de Itabuna, na Bahia, falou muito claramente sobre o significado dessa posição, ao anunciar no início de julho que reabriria o comércio. Ele disse: “Morra quem morrer”. E se sabe exatamente quem vai morrer mais. Na elite brasileira vai haver algo que eles provavelmente vão chamar de dano colateral. Mas a regra, quando se observa o que tem acontecido no Brasil desde fevereiro, é que as pessoas que têm acesso principalmente à terapia intensiva têm muito mais chance de sobreviver, mesmo sendo idosas e mesmo tendo comorbidades. Não é possível dizer que os brasileiros, em geral, não têm acesso, porque nós temos o SUS, e em alguns locais o SUS conseguiu oferecer um tratamento de excelência, apesar das dificuldades. Mas o SUS não consegue atuar de forma igual em todos os lugares. Então, se sabe exatamente quem vai morrer mais.
P. No que se refere aos povos indígenas, que outros elementos mostram que pode ter acontecido o crime de genocídio contra eles?
R. A diferença essencial, que facilita a identificação do genocídio nas populações indígenas, é o interesse claro que existe em utilizar as terras, as riquezas naturais, em eliminar o “obstáculo” que estas figuras representam, na medida em que são os grandes guardiões da floresta, do meio ambiente, do patrimônio natural brasileiro. Eliminar esses guardiões facilitaria muito a apropriação de suas terras, basta ver o ritmo de desmatamento e de ocupação ilegal de terras protegidas que está ocorrendo no Brasil. O motivo do crime é evidente. A velha pergunta dos filmes de mistério ―quem ganha com o crime?― tem aqui uma resposta muito evidente.
P. Qual é a história do conceito de genocídio, para podermos entender melhor o que está em disputa nesse debate?
R. Começa com (Winston) Churchill, em outubro de 1943, quando vêm a público as atrocidades cometidas pelos nazistas. Ele diz: “Nós estamos diante de um crime sem nome”. E então um jurista polonês, Raphael Lemkin, publica um artigo, em novembro de 1943, afirmando: “Por genocídio nós entendemos a destruição de uma nação ou grupo étnico”. É ele que usa pela primeira vez essa palavra, combinando “genos”, do grego, que é raça ou tribo, com a palavra latina “cídio”, que significa matar. Nunca deixou de ser um conceito polêmico, em função do negacionismo e, principalmente, por causa do dilema de alguns países, que queriam punir o genocídio praticado por Hitler contra os judeus, mas que estavam fazendo seus genocídios alhures, como os próprios ingleses, os americanos, os franceses, que tinham o genocídio nas suas histórias, algumas até bem recentes. Então, como constituir o conceito de um crime que não fosse depois se voltar contra eles? O debate, portanto, sempre existiu. E o Lemkin já dizia neste artigo: “o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, ele significa muito mais um plano coordenado de diferentes ações que visam à destruição dos fundamentos essenciais à vida de grupos, com objetivo de, mais adiante, exterminá-los”.
P. O fato de a palavra se originar com o holocausto judeu perpetrado por Hitler e pelos nazistas, na Segunda Guerra, não é também o que dificulta hoje, mesmo para juristas experientes, entenderem que estamos num outro momento da história? Assim como para alguns é difícil compreender que os golpes hoje nem sempre são com tanques na rua, como foram no séculos 20, não estaria sendo difícil compreender que, no tempo das pandemias e da emergência climática, a interpretação também precisa se atualizar porque os desafios e as ameaças são também outros?
R. Genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde. Eu trabalho há mais de 10 anos no estudo e pesquisa de pandemias e da Organização Mundial da Saúde. As pessoas achavam curioso que alguém do direito internacional se interessasse por esses assuntos. Agora já não precisa mais explicar por que fiz minha livre docência sobre a gripe H1N1. Há algo novo que os sistemas internacionais vão ter que levar em conta. O fato de não haver um precedente significa apenas que, na contemporaneidade, a humanidade não tinha chegado a essa fase da história. Com toda a tecnologia e ciência, é a primeira vez que nos confrontamos com um fenômeno dessa magnitude. A grande maioria dos Estados fez o máximo possível com as condições que tinha para enfrentar essa situação. Não foi esta a decisão do Estado brasileiro.
P. Algumas pessoas confundem o negacionismo como algo equivocado, porém honesto, no sentido de que os negacionistas realmente acreditariam na não existência de algo. Claramente, porém, o negacionismo é uma manipulação e uma estratégia...
R. O negacionismo surge, historicamente, justamente com relação ao holocausto. Essa palavra vai surgir nos ambientes universitários dos anos 70, dos anos 80, para se referir a algumas teses acadêmicas e discursos políticos que diziam que o holocausto judeu ou não foi tão grave assim ou não ocorreu. É muito interessante isso. As extremas direitas europeias, e principalmente a francesa, não tinham condições de se apresentar politicamente com suas ideias diante da monstruosidade do que aconteceu com o povo judeu. Então, como estava claro que essas ideias fascistas necessariamente levam ao extermínio e ao genocídio, para que se tornassem palatáveis de novo era preciso negar o que aconteceu. Do contrário, não haveria como se apresentar de novo no espaço público. Universidades francesas importantes acabaram envolvidas nesse escândalo por permitirem a existência de teses que afirmavam que ou não foi tão grande assim ―a banalização― ou não aconteceu. A coerência não é algo importante para a extrema direita, nunca foi. É aí que surge essa expressão ―negacionismo. Os judeus são obrigados a, periodicamente, provar que o holocausto aconteceu porque os negacionistas jogam com o que se chama ônus da prova. Eles não provam que não aconteceu, mas te obrigam a cada momento a provar que aconteceu.
P. Como acontece, especialmente nesse Governo, com a memória da ditadura militar (1964-1985) no Brasil....
R. Sim. E aí eu quero dizer, muito enfaticamente, que isso vai acontecer conosco com relação à pandemia de covid-19 no Brasil. Periodicamente, nós vamos ter que provar essas dezenas de milhares de mortes. Periodicamente, nós vamos ter que voltar a explicar como aconteceu. Tenho certeza absoluta que essa disputa vai acontecer. Será preciso fazer um memorial para esses mortos. A história terá que ser contada de forma incessante. Da mesma forma que acontece com as vítimas da ditadura militar, haverá desmentidos. Entendo a preocupação de preservar o termo genocídio, mas o fulcro do que estou dizendo desde que começamos a conversar é que não há exagero em falar de crimes contra a humanidade com relação ao que está acontecendo hoje no Brasil referente à covid-19. Por tudo o que já falei e porque essas mortes eram evitáveis.
P. Como fica claro que essas mortes seriam evitáveis?
R. O Brasil não é um país miserável, que não tem sistema de saúde e estava fadado a ter uma evolução trágica da doença. O Brasil é referência internacional de cobertura universal de saúde. Nos países em desenvolvimento, não há nada como o nosso Sistema Único de Saúde. O Brasil tem profissionais de saúde de altíssimo nível, sanitaristas de altíssimo nível, todos ejetados do Ministério da Saúde. O Brasil tinha todos os quesitos para ter uma das melhores respostas do mundo à covid-19. Muitos brasileiros pensavam que o Brasil não tinha dinheiro. E nós descobrimos que o Brasil tem muito dinheiro, que uma parte muito significativa do PIB foi destinada à resposta à covid-19, mas ela não tem chegado onde precisa chegar, por uma série de razões, entre elas as que eu já mencionei. Então, como é possível? Poderíamos ter tido uma realidade em que todas as autoridades alertassem para a doença, pedissem para a população ficar em casa apoiando as medidas e, por alguma razão, o sistema tivesse uma disfunção. Mas não é nem de longe o que estamos vivendo no Brasil. Nós não temos um governo federal que aja no sentido de conter a pandemia mas não tem êxito. Ao contrário. Existe uma obstrução reiterada, com a justificativa de proteger a economia brasileira, uma justificativa pífia, que quem entende de economia diz que não é sequer a melhor forma de proteger a economia. E quero chamar muito enfaticamente a atenção para a comunicação. A comunicação de risco durante a emergência é um dos principais pilares do enfrentamento em todos os manuais. O primeiro ponto é a confiança nas autoridades sanitárias, o segundo ponto é a comunicação clara, inclusive de incertezas científicas sobre o que está ocorrendo. Em nenhum momento podemos subestimar a comunicação como elemento de resposta. Na comunicação, assim como em tantos pontos, a intencionalidade de não deixar a população se proteger como deveria é claríssima.
P. O que diz exatamente a legislação?
R. O conceito de genocídio, na legislação brasileira (Lei 2.889, de 1º de Outubro de 1956), é límpido. Começa referindo-se à intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Refere-se a matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeter o grupo ou membros do grupo a condições de existência capaz de ocasionar a destruição física total ou parcial, assim como adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Também menciona a incitação direta ou indireta e diz ainda que a pena será agravada em um terço quando o crime for cometido por governante ou funcionário público.
P. Em quais destes casos o Governo brasileiro se enquadraria, no que diz respeito à resposta à covid-19?
R. Causar lesão grave física ou mental a membros do grupo, isso me parece evidente nos argumentos que já mencionei. Submeter o grupo a condições de existência capazes de ocasionar a destruição física parcial ou total, está mais do que claro. Imagina, o Governo vetou até mesmo a obrigação de realizar uma campanha para os indígenas traduzida nos seus idiomas, explicando a gravidade da doença. No Tribunal Penal Internacional, o conceito é semelhante. Me parece que, em relação aos indígenas, existe uma circunscrição geográfica que facilita a configuração da prova da prática desse crime num eventual processo. Essa tipificação do crime entre os indígenas me parece ter um amplo leque de evidências. Ninguém pode, porém, ser condenado previamente. O que estamos dizendo é que é possível que esse crime esteja acontecendo e que isso precisa ser investigado nessa clivagem, como crime de genocídio. O que é muito importante é que não exista mais lugar para o argumento da banalização da palavra genocídio. Que deixe de ser considerado algo distante, denuncista ou absurdo e passe a ser investigado.
P. E quanto aos negros que, segundo pesquisas, são a maioria dos que morrem por covid-19?
R. Na população negra, eu vejo muito mais do que matar ou deixar morrer, o que também é um crime contra humanidade. Quando o Governo faz essa série de ações que obstaculizam a prevenção e o combate à covid-19, ele joga com a evolução natural da doença: se deixar a evolução natural da doença rolar sem intervenções mais efetivas, a tendência é que ela atinja mais as populações vulneráveis e extermine esses atores, cujas vidas consideraria que não importam. Na população em geral, os caminhos do crime contra a humanidade são mais velados do que os crimes contra as populações indígenas.
P. Já ouvi pessoas dizendo que até agora morreram “poucos” indígenas, para se considerar genocídio (cerca de 500, segundo organizações indígenas). É uma afirmação bastante terrível, para dizer o mínimo, mas é importante perguntar, para que todos possam compreender um debate que diz respeito não só aos brasileiros, mas à população global: para ser considerado genocídio ou extermínio é necessário um número elevado de mortes?
R. Do ponto de vista da tipificação do crime, do ponto de vista técnico, é irrelevante o número de pessoas que morreram. Nem na lei brasileira nem na lei internacional existe um número mínimo de pessoas para configurar genocídio. Para a tipificação do crime, a essência é a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo. Uma intenção que não necessariamente vai resultar em mortes. É claro que, do ponto de vista ético, o número de mortes é totalmente relevante. Mas, como disse antes, mesmo a tentativa de genocídio é punível.
P. Uma outra pergunta bem óbvia, mas importante. No caso de uma ação de genocídio no Tribunal Penal Internacional, quem é responsabilizado é a pessoa, não o governo, certo? Poderia, por exemplo, no caso brasileiro, serem responsabilizados o presidente Jair Bolsonaro e os generais, assim como outros funcionários com poder de decisão?
R. Sim. O TPI é uma grande conquista da humanidade também porque ele permite responsabilizar pessoas por crime contra a humanidade. Alguém chega ao poder em determinado Estado, mas há limites do que pode fazer ao exercer seu poder contra o próprio povo. Existem gestos que agora têm nome e são tipificados, e o mais grave deles é o genocídio. Há possibilidade de processar chefes de Estado, generais, grandes empresários, grileiros, funcionários públicos com cargos de responsabilidade, pessoas que participaram do crime.
P. Você defende que esse debate precisa ser feito e que precisa ser feito com serenidade, porque é importante para o Brasil. Por que é importante?
R. Só o fato de debater já é importante. Pode levar anos para o TPI decidir se abre a investigação ou não. Mas a construção de denúncias bem fundamentadas tecnicamente é um processo no qual todos ganham. O Brasil ganha, e as instituições brasileiras ganham.
P. Por quê?
R. Processos que são movidos em busca da justiça, para responsabilizar pessoas que atentam contra a vida de populações vulneráveis ou contra grupos específicos, como os indígenas, são processos que fazem emergir a verdade. O processo vai dando voz às vítimas, oportunizando que sejam escutadas nas mais diversas instâncias. A construção, organização e sistematização dessas provas vão despertando a consciência das pessoas. No Brasil, o mais importante é mostrar que o que está acontecendo vai muito além de um debate vulgar sobre questões da maior gravidade, vai muito além da suposta incompetência do Governo federal na resposta à covid-19. Um processo faz com que a verdade apareça na voz das vítimas ou de seus familiares. Vai mostrando que não é só uma forma infeliz de se manifestar, não é só ignorância, não é só incompetência. Existe uma intencionalidade. No caso de uma ação por genocídio ou por outro crime contra a humanidade, como o extermínio, o caminho é mais importante do que o destino.
P. Por que então uma reação tão forte à declaração do ministro Gilmar Mendes, mesmo entre pessoas que se opõem ao Governo Bolsonaro?
R. Acredito que a reação à fala de Gilmar Mendes tem duas causas. Uma delas é de que o presidente estaria supostamente mais calmo. Em função da prisão do (Fabricio) Queiroz, ele modificou suas estratégias de ataque às instituições. Neste momento, em que a tensão supostamente está diminuindo, um ministro do STF usa uma expressão referente ao pior tipo de crime que pode existir. E utiliza uma expressão que tem transcendência internacional imediata, porque o mundo inteiro sabe o que é um genocídio. Fica parecendo então que é um gesto que gera tensão num momento em que supostamente as tensões estariam sendo aliviadas. E eu digo supostamente porque, neste momento de pandemia, temos acompanhado o Diário Oficial todos os dias. Quando a gente vê atos como os vetos ao plano emergencial para os indígenas, a gente vê que a tensão não está baixando de forma alguma. O segundo elemento é a dificuldade de identificar essa sistematicidade no ataque às tentativas de controle da pandemia. No dia a dia, esses elementos vão sendo interpretados como vulgaridade, leviandade, incompetência. Mas esse fio do tempo, com ações concretas, este que demonstra o ataque sistemático à saúde pública, fica menos visível. Acredito que muitas pessoas, com a melhor das intenções, dizem que não vai levar a nada discutir a tipificação como crimes contra a humanidade porque é uma questão política, porque seria um caso para o sistema de controle dos direitos humanos, onde o Estado pode ser responsabilizado. Eu não concordo com isso. Acredito que existem pessoas agindo de uma forma sistemática contra a saúde pública e a vida dos brasileiros. Eu teria muita dificuldade de dizer que relacionar a morte de mais de 80.000 pessoas como crime contra a humanidade seja banalizar a palavra genocídio. E não apenas pelo número de pessoas, mas principalmente, é importante repetir, porque essas mortes seriam evitáveis.
P. Você afirmaria que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um genocida?
R. Eu afirmo que é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil. Se queremos dar densidade técnica a esse debate, não podemos condenar antes do julgamento. Devemos denunciar e esperar a decisão. Tanto que, no jornalismo, quando alguém é acusado de um crime, vocês se referem a ele como suspeito. Acho que esse é um valor a se preservar. Acredito que o presidente do Brasil é suspeito de crimes contra a humanidade, entre eles o genocídio. E o caminho pelo qual formulamos essa acusação é um caminho importante para a sociedade brasileira, porque é mais um indicativo da gravidade do que está acontecendo e que algumas pessoas estão encarando de uma forma bastante irresponsável. Permitir que esses comportamentos existam e se repitam é muito grave. Nós precisamos discutir com a tranquilidade e com a seriedade que assuntos desse tipo exigem. E faz parte disso não prejulgar. Não se referir a alguém que ainda não foi condenado como se já o tivesse sido. Mas não tenho nenhum problema em dizer que diversas autoridades brasileiras, entre elas o presidente da República, me parecem suspeitas de crimes contra a humanidade e precisam ser investigadas.