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Donas de casa protagonizaram a luta que levou à criação do SUS

Vinte e nove anos após o decreto da lei orgânica da saúde, relembre o movimento popular que conquistou sua existência

Antes do SUS, crianças morriam de sarampo, catapora, paralisia infantil e outras doenças curáveis, relata liderança do movimento popular. Foto: Reprodução/Documentário "MSZL - Um povo de luta"

Há 29 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi regulamentado por meio da Lei 8.080. Em 19 de setembro de 1990, a primeira Lei Orgânica do SUS regulamentou alguns dos princípios colocados na recém-decretada Constituição Cidadã. Entre eles estavam a universalidade do acesso, o direito de participação da comunidade na gestão do sistema e o financiamento compartilhado entre União, estados e municípios.

Em um Brasil que respirava os ares da redemocratização, a lei foi interpretada como uma conquista do direito à saúde pública e de qualidade. Nos anos que se seguiram, o SUS, hoje alvo de políticas de austeridade, se torna uma referência internacional.

No aniversário da Lei 8.080, o Brasil de Fato relembra como era a realidade brasileira antes do SUS, através da voz e memória de brasileiras e brasileiros que participam do Movimento de Saúde da Zona Leste de São Paulo, um dos grupos ativos na mobilização para que o sistema público e gratuito fosse implementado.

Confira:

Em meio aos anos de chumbo

A década era 1970. A Presidência da República estava ocupada pelo general Ernesto Geisel, quarto presidente da ditadura militar brasileira (1964-1985). Os indicadores sociais marcavam números preocupantes. A mortalidade infantil, por exemplo, era de 120 óbitos para cada mil nascimentos.

A saúde, um direito básico, pouco acessível para a massa da população. O SUS ainda não existia. O atendimento gratuito só estava assegurado para aqueles e aquelas que tinham carteira assinada e contribuíam com a Previdência Social.

A parcela que não se enquadrava neste perfil tinha que recorrer a consultas pagas ou aos poucos equipamentos de saúde municipais e estaduais, nos quais apenas mulheres e crianças pequenas tinham atendimento garantido.

Em São Paulo, a situação chamou a atenção dos moradores da zona Leste do estado, em especial das donas de casa. No bairro Jardim Nordeste, localizado no distrito de Arthur Alvim, foi onde iniciou uma mobilização importante.

“Aquela época apareceu uma mortalidade infantil com o sarampo matando todo mundo, a catapora, paralisia infantil (…) As crianças já nasciam da barriga da mãe cegas ou aleijadas”. O depoimento é de Justelita dos Santos, hoje com 80 anos.

Uma das muitas nordestinas que migrou para a região no século 20 em busca de melhores condições de vida. Justelita chegou no Jardim Nordeste quando as ruas de asfalto eram poucas e o horizonte preenchido por plantações de eucalipto. Os equipamentos de saúde eram escassos. A região não contava com nenhum posto de saúde.

Enquanto os maridos trabalhavam longas horas do dia como operários das fábricas do ABC paulista, a difícil realidade levou Justelita e outras donas de casa a se organizar.

Passeata realizada pelos movimentos organizados nos bairros. Foto: Arquivo Pessoal Claudia Afonso.

“Juntou dez donas de casa daqui do Jardim Nordeste. Nós começamos a pensar e chorar, porque não sabíamos que jeito dar naquilo. Todo dia, sentávamos as dez donas de casa para discutir o problema da saúde pública, o que podia fazer. E a gente não tinha nada, nós não sabíamos o que era saúde pública, não sabíamos como discutir os problemas”, relembra a liderança.

Com medo da repressão policial, elas se reuniam escondidas em uma pequena sala nos fundos da Paróquia Santa Luzia. Poucos meses depois da primeira reunião, as donas de casa conheceram outro grupo que viria a contribuir para a luta por mais equipamentos públicos na região, formado por médicos e jovens estudantes de medicina.

Em plena ditadura militar, os profissionais se dirigiram para a periferia da zona Leste. A ideia era conversar com a população. O objetivo era conscientizar as pessoas sobre os fatores que influenciavam no adoecimento, a falta de equipamentos públicos e a desigualdade.

Entre estes jovens estudantes estava o sul-mato-grossense Carlos Neder, estudante de medicina na Universidade de São Paulo (USP). Ativo no movimento estudantil, ele e outros colegas usavam a medicina como um instrumento popular para conscientizar o povo sobre o direito à saúde.

Eles se organizam, e nós também

O período também marcou o ressurgimento de um novo sindicalismo. As greves do ABC foram um dos fatores que influenciaram os moradores do bairro do Jardim Nordeste, formado por uma grande massa de operários.

“É interessante observar que, à medida em que foi avançando a organização da luta do operariado no ABC, havia a necessidade de uma organização em âmbito popular”, conta Carlos Neder, médico sanitarista, mestre em Saúde Pública pela Unicamp e ex-deputado estadual.

“A maioria dos operários era formada por homens e mulheres que se sentiam incumbidas de garantir a sobrevivência, educação, o mínimo necessário para que a família pudesse ter a sua subsistência garantida”, completa.

A união das donas de casa e dos jovens médicos possibilitou a descoberta de uma brecha na legislação. A lei do estado de São Paulo assegurava a existência de conselhos de saúde para fiscalizar a atuação do poder público. A população, que utilizava os serviços, estava, no entanto, excluída desses espaços. Só faziam parte figuras como delegados, padres e freiras.

“Dialogando com a população, entendíamos que as pessoas que usavam o serviço é que deveriam representar a população no conselho. E que ele deveria ser eleito de tal maneira que fosse conhecido por toda a comunidade, e a comunidade soubesse a quem recorrer quando da apresentação de uma queixa, ou uma sugestão”, explica Neder.

Iniciava-se ali uma luta para que o povo pudesse estar representado nos conselhos de Saúde.

Inauguração da unidade de saúde do Jardim Nordeste,a primeira a ser construída após pressão popular. Foto: Arquivo Pessoal Claudia Afonso.

As representantes do povo

Era 1978. Ano em que o Brasil completava 14 anos sob o comando dos militares. Sob o olhar da repressão, da censura e de eleições indiretas, 12 donas de casa mostraram que a organização popular pode surtir efeito.

“Não havia eleição. Elas tiraram suas próprias fotografias. Fizeram as urnas em caixas de sapato. Fizeram as cédulas. Frequentavam as feiras, igrejas e locais públicos para colher votos da população para que elas fossem eleitas. E foram eleitas com uma votação consagradora de 8.146 pessoas”, relembra o sanitarista.

Após a eleição, uma grande caravana formada por 60 ônibus cheios de moradores da zona Leste tomou a frente da Secretaria de Saúde do estado. Foi sob pressão popular que as conselheiras foram reconhecidas oficialmente pelo poder público. A partir daí, os conselhos passaram a ser eleitos pelo povo.

Ao pensar no período, Justelita destaca a importância da mobilização das donas de casa. “Às vezes, o povo pensa que é o governo, o político, mas não foi, não. É um projeto feito por nós. Doze donas de casa semianalfabetas ainda por cima. Bem poucas sabiam ler e escrever”.

Oito anos depois, com a restauração da democracia, a Constituição brasileira de 1988 tomaria como base as demandas dos movimentos regionais para estabelecer o Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito.

Edição: Katarine Flor e Cecília Figueiredo

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