E se esses diálogos fossem entre o juiz e a defesa?
Sergio Moro, da Lava Jato ao Ministério da Justiça
Moro recebe cumprimento do presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante assinatura de decreto presidencial que flexibiliza regras para atiradores esportivos, caçadores e colecionadores de armas. Apesar de Bolsonaro considerar Moro "um ícone" para o brasil, tem tomado atitudes que contrariam seu ministro da Justiça.
A imagem é conhecida. Têmis, a deusa da Justiça na mitologia grega, com uma balança nas mãos e venda nos olhos. A representação é uma das maiores garantias conferidas aos cidadãos contra eventuais arbítrios do poder público. O pilar de qualquer Justiça que se pretenda dentro dos limites do Estado democrático de Direito é, além de praticar uma justiça justa, ser, acima de tudo, absolutamente imparcial.
Em nosso sistema legal, o Poder Judiciário se sustenta naquilo que chamamos de “tripé da Justiça”, formado por juiz, membro do Ministério Público (MP) e advogado. MP e defesa são as partes em um processo. Na imensa maioria dos casos criminais, são partes com pedidos diametralmente opostos, inclusive. De um lado, o órgão acusador requerendo a condenação de alguém; e, do outro, o seu advogado pleiteando a absolvição.
Cabe ao juiz, de forma imparcial e analisando tanto as provas produzidas no processo quanto os argumentos das duas partes, sentenciar e definir a liberdade de um réu.
A partir do momento em que o juiz e o Ministério Público traçam juntos estratégias de um processo, este deixa de ser um instrumento para se descobrir a verdade e passa a ser tão somente a instrumentalização da vontade de uma das partes.
A divulgação das conversas entre procuradores da Lava Lato e o então juiz Sergio Moro é o maior escândalo da história do Poder Judiciário em nosso país. Pelo Código de Processo Penal, várias fases da operação poderão ser anuladas e as condenações, revistas.
Os trechos das conversas já divulgados —cujo teor não foi refutado pelas partes afetadas pelo vazamento — demonstram mais do que uma proximidade entre juiz e acusação: revelam alguém que esta prestes a julgar um pedido dando sugestões de como este pedido deverá ser feito.
Operação Lava Jato, 5 anos
Equipe da Polícia Federal faz batida em casa de câmbio que funciona em posto de gasolina (Posto da Torre), no Distrito Federal. Mandado cumprido no local deu origem à Operação Lava Jato, em 17 de março de 2014.
Em outro trecho dos diálogos é possível ver com clareza um juiz informando uma das partes sobre um fato que teve conhecimento e que tal informação poderia auxiliar o Ministério Público nas investigações. O juiz, ciente da gravidade do pedido, ainda faz uma observação para manter o assunto “reservado”.
Percebam a completa distorção do caráter igualitário e imparcial que a Justiça deve ter: um juiz, que legalmente não pode sequer investigar, recebe uma informação e entrega para uma das partes checar o fato. Mas não um fato qualquer ou algo corriqueiro que todo cidadão zeloso quer que uma autoridade investigue —estamos falando de um fato que esse próprio magistrado pode, futuramente, julgar!
A proximidade e a completa inversão de papéis vão além quando, em dado momento das conversas, um procurador da República avisa o juiz da causa que um pedido foi feito no processo, mas que ele poderia “ficar à vontade” para negar o pedido. Mais adiante o juiz responde —como se o contato prévio entre as partes fosse algo comum— da seguinte forma: “Blz, tranquilo, ainda estou preparando a decisão, mas a tendência é indeferir mesmo”. Tal trecho mostra não apenas a evidente perda de parcialidade do magistrado, mas sim um juiz antecipando a decisão que terá em breve para uma das partes de um processo. A balança da Justiça, nesse caso, certamente pendeu para um lado.
Como dito acima, os fatos trazidos pelo site The Intercept, que ainda promete revelar novos diálogos, são de extrema gravidade. Colocam em risco uma operação policial que, apesar dos evidentes abusos cometidos ao longo dos anos, se mostrou reveladora de um sistema de corrupção endêmico em nosso país.
Os personagens dos vazamentos merecem ter a seu lado a presunção de inocência e todas as garantias legais a seu dispor, apesar de por muitas vezes terem ignorado essas mesmas garantias sob o messiânico discurso de combate à corrupção.
Os fatos são muito graves e merecem uma rápida, exemplar e isenta investigação. E se você ainda não percebeu a gravidade do que está acontecendo, convido a fazer um breve exercício. Pegue todas as conversas divulgadas e troque um dos interlocutores: em vez de um diálogo entre juiz e membros do Ministério Público, uma troca de mensagens entre juiz e um grupo de advogados de uma grande construtora.
Agora ficou grave o suficiente?
Augusto de Arruda Botelho Advogado criminalista, ex-presidente e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Folha de São Paulo - 12.jun.2019 às 2h00